Quem disse que games não são arte?

Outro post da nossa convidada:

Alguns meses atrás uma associação americana chamada NEA (National Endowment for the Arts) anunciou publicamente que games deverão ser considerados arte. Não tão claramente assim, mas, quase. Essa agência distribui fundos do governo para financiar projetos artísticos. O que ela falou foi que jogos educacionais ou independentes podem agora também receber esse fundos. Claro que o artista vai ter que concorrer com outros pelas vagas, mas pelo menos agora existe a possibilidade.

A seguir neste post eu falo de um jogo que poderia, muito bem, ser considerado uma expressão de arte.

 

Essa declaração aparentemente colocaria um fim ao debate já muito perpetuado na internet que discute o status artístico dos games. E a resposta continua nebulosa. No final, tudo depende da opinião do jogador, se ele acha que jogos podem ser arte ou não.

Eu acredito sim que os jogos podem ter e tem status artístico da mesma maneira que a pintura tem status de entretenimento. Nem todas as pinturas são e devem ser consideradas formas de arte, muitas delas são somente entretenimento ou decoração. A mesma coisa com os jogos. Nem todos eles devem ser vistos como só entretenimento, muitos delem possuem seu appeal artístico também.

The Tiny Bang Story, da Colibri Games, pode ser visto somente como um puzzle point-and-click, em que o jogador deve primeiro achar coisinhas escondidas no cenário, e depois resolver alguns problemas para então terminar de montar o quebra-cabeça em que se constitui o mundo do jogo.
Apesar de a jogabilidade ser o mais simples possível, em que há somente um comando (clicar), o jogo é bem desafiador em relação aos objetos que estão escondidos no cenário e aos problemas que devem ser resolvidos.

Alguns são realmente desafiadores. Se fosse somente isso, o jogo terminaria por aí. Qualquer outro envolvimento além do simples “tentar achar e resolver” não existiria. Mas eu creio que o jogo não para por aí. Em primeiro lugar, a estética do jogo é bastante distinta.

 

O jogo possui um cenário delicadamente construído com um traço fico e cores suaves. Aquilo que deve ser animado movimenta-se lentamente e a música trabalha em uma sutil comunhão com o movimento das coisas. O jogo é sereno, não há uma intensificação da jogabilidade em nenhum momento. Claro, existem problemas a serem resolvidos que são mais difíceis do que outros, mas que nem por isso saem do padrão calmo e de certa maneira até meio surreal que esse puzzle prega.

O tema de Tiny Bang é a reconstrução de um pequeno mundo que foi abalado após a colisão de dois corpos esféricos que o circulavam. O mundo inteiro se partiu em quebras de quebra-cabeça que devem ser recuperadas pelos vários cenários do mundo, para depois serem colocadas em seu devido lugar.

 

 

O que é interessante de ser reparado nesse jogo é que ele possui uma narrativa bastante escondida entre o cenário, as peças escondidas e os problemas a serem resolvidos. E acho que essa maneira de incluir aos pouquinhos a narrativa no jogo e mesclá-la com a arte visual e lúdica de um jeito que quase a apaga  é o potencial artístico do jogo.

Não somente porque o visual é bonito e a música é encantadora, mas quando é percebido que o jogo trata também de uma história, abrem-se possibilidades de interpretação. Todas as personagens vistas no jogo estão em um cenário que apresenta um aspecto diferente e uma época diferente da vida de um personagem misterioso, que não é você. A avó está ligada à infância desse personagem, o avó está ligado à juventude, a moça está ligada a um prêmio-maçã que esse protagonista recebeu (metáfora relativa ao fruto proibido), por exemplo.

 

 

Ao final de cada estágio, é construído um veículo ou um meio de transporte que vai levar o jogador à outro estágio da reconstrução do mundo. Esse meio de transporte pode ser visto como uma metáfora: quando ele aparece como criança, o transporte é um trenzinho. Quando cresce um pouco, é um avião. Depois, é um barco, o que pode mostrar que ele viajou para bem longe.

Ademais, a cada estágio completado o jogador é levado de volta para a tela inicial e é mandatório que ele encaixe as peças do quebra-cabeça que ele recuperou ao longo do cenário que acabou de completar. O jogador somente será levado adiante se ele construir o cenário que está por vir.

O jogo é relativamente curto, possui somente 6 cenários considerando o último que é estático, mas creio que esse tamanho seja o ideal para ele. Tudo é amarrado ao final, sejam os personagens, sejam os problemas mais difíceis do jogo que ficam acessíveis quando todos eles terminam. O que é uma metonímia do mundo inteiro reconstruído, que é o que acontece ao final.

The Tiny Bang Story entra naquele grupo de indie games quase experimentais. Os desenvolvedores arriscam colocar elementos não esperados em um determinado gênero de jogo. Essa pequena narrativa disfarçada entre os cenários dos jogos e nos objetos que devem ser encontrados eleva o jogo de um estado somente puzzle para um estado artístico, onde percebe-se que os há um motivo para cada elemento estar no lugar onde está.

Gosto muito de pensar nesse jogo como uma representação artística porque ele não somente possui uma intenção de expressão, de problematização, de questionamento detectável de um determinado personagem em meio à reconstrução daquele mundo feito de pedaços da vida de uma pessoa, mas também pela estética visual e sonora que ele propõe, que compartilham de uma serenidade incrível.

The Tiny Bang Story pode ser comprado aqui, no site oficial.

 

Clarissa Picolo é mestranda do Programa de Pós-Graduação em letras da UNESP, tendo como projeto de pesquisa estudar a narrativa de JRPGs. Ela escreve como convidada neste blog.