Análise da Narrativa de Games

Mas… quem é você? O que você faz?

Eu sou Clarissa Picolo, bacharel em Letras com Habilitação em Tradução pela UNESP e atualmente mestranda do programa de pós-graduação em estudos literários da UNESP no campus IBILCE.

Como assim pesquisa?

Diferentemente da pós-graduação tipo especialização, o mestrado ou doutorado é um tipo de extensão para quem quer seguir carreira acadêmica, que é ser pesquisador. O aluno deve assistir a disciplinas especiais, desenvolver uma pesquisa sobre um tema da área, apresentá-la em congressos e simpósios, publicar artigos sobre ela e por fim defendê-la em uma dissertação ou tese.

Escolhi desenvolver uma pesquisa que tem como objeto de estudo jogos do gênero JRPG, e o tema da minha pesquisa é estudar o narrador e o foco narrativo (ponto de vista) das narrativas desses jogos. Meus objetos a serem analisados são: Chrono Trigger, Tales of Symphonia e Eternal Sonata.

Esse é mais ou menos um resumo do que eu faço e do que venho fazendo desde 2008 que foi quando comecei a estudar jogos eletrônicos. Desde esse ano, com base nos textos que li, desenvolvi um tipo de análise que é diferente da análise dos vídeos da série LudoBardo, e eu gostaria de compartilhar-la também.

A análise proposta por Arthur Protasio é muito interessante, e a maneira como ele explica e articula essas ideias no vídeo é ótima. Mas eu não concordo com essa análise em três pontos:

1) o primeiro deles é pensar na narrativa de um jogo como um script. Na minha opinião esse tipo de pressuposição pode ser um pouco nociva porque um script essencialmente é escrito, manifesta-se no plano verbal, e existem muitos jogos que possuem plano verbal reduzido ou inexistente e ainda assim eles possuem narrativa. Essa ausência de palavras em um jogo inclusive é o que faz muitas pessoas acharem que o jogo não tem história simplesmente porque não tem palavras, o que é um equívoco. A narrativa em um jogo manifesta-se em dois ou até em três sentido que é o verbal, o visual e o sonoro.

2) não me parece muito proveitosa a ideia de que o jogo precisa do jogador para ter sua narrativa ativada, apesar de isso ser a mais pura verdade. Mas no caso, considerar essa instância, esse momento como válido é como considerar que um leitor tem a opção de não abrir o livro quando se analisa um romance. Eu prefiro encarar o jogo na sua maior plenitude possível, que é sendo jogado. Que é na verdade para isso que um jogo foi feito, para ser jogado. E eu acho que o jogo já existe aí e que a narrativa já surge aí e o jogador já é mesclado. Tudo é pleno e integrado.

3) a oposição “narrativa embutida x narrativa emergente”. Me corrija se entendi errado, mas soa como opostos. Na análise que eu proponho não existe isso, não há espaço para a separação–

. Porque esse tipo de oposição é o que faz uma análise ou tender muito para o lado lúdico ou muito para o lado narrativo, sem balancear igualmente os dois. Sei que o Arthur, em mais de um vídeo, disse que queria ver como tal jogo “unia as duas partes”, mas mesmo assim, se elas são duas partes, quer dizer que elas não são a mesma. Eu enxergo as duas como a mesma, existem apenas diferenças nas manifestações.

Como assim “manifestações”?

–>Antes de eu aprofundar nesta parte, eu devo dizer que escolhi analisar a narrativa de um jogo não pelo objeto-contado, mas sim pelo contador. Ou seja, eu decidi pegar a figura do narrador e desenvolver análises em cima dela do que em cima daquilo que ele narra, que é a narrativa.

—–>E antes de mais nada (novamente): toda narrativa tem narrador. É inerente. Você pode não vê-lo, não ouvi-lo, não percebê-lo de maneira nenhuma, mas ele está ali. O narrador é uma essência de toda narrativa, é uma entidade, é uma presença que pode tanto mostrar-se descaradamente como esconder-se. O fato é que ele sempre está ali.

Continuando: decidi analisar o narrador. Eu decidi desvendar quem é essa presença em um jogo eletrônico, e de acordo com minhas leituras, cheguei à conclusão de que ele se manifesta em, pelo menos, três dimensões:

1) o narrador-câmera

2) o narrador-jogador

3) o narrador-protagonista

O narrador-câmera é o narrador que supostamente não existe. Para traçar um paralelo com a abordagem do Arthur, seria aquele que narra a narrativa-embutida. Esse narrador é aquele que mostra as coisas, é a cena, é o movimento da câmera, é a imagem, é todo o conjunto do visual. Claro que dizer isso é superficial, porque dentro dessa manifestações existem sub-manifestações, que não vêm ao caso aqui.

O segundo narrador é o jogador. Isso porque é o jogador que dita o tempo e a sequência da narrativa. É ele que dá as cartas dentre todas as cartas que são colocadas disponíveis pelo narrador-câmera. É ele que escolhe quais percursos narrativos serão tomados. E nisso, o jogador assume a posição de um gerador de narrativa, que é um narrador. E aprofundando mais um pouco: mesmo em jogos onde não tem uma interatividade muito aparente, considerado linear, o jogador ainda é um narrador porque somente a escolhe dele de ir para a direita em vez da esquerda, ou de mexer na gaveta em vez de abrir o baú primeiro, já conta como uma escolha importante para a narrativa do jogo.

–>Isso também tem um pouco a ver com uma abordagem mais narratológica que eu escolhi, que vem da Murray (nesse livro). Ela diz que o jogo é uma narrativa. Não concordo com isso. Jogo é jogo, narrativa é narrativa. Mas o que é aproveitável do que ela fala é que tudo no jogo pode ser visto como uma narrativa. E como o meu método é sempre procurar analisar todos os aspectos do jogo como uma união de fatores que compõem uma obra, sem separá-los, as ações puramente lúdica entram também como configuradores da narração, como atributos, detalhes e adicionais daquilo que é narrado.

Por último, o narrador-protagonista. Grosso modo, todo personagem protagonista de um jogo é uma instância de narrador. Simplesmente porque aquele primeiro narrador, o câmera, está contando uma história que não é a história do jogador como o agente PRIMÁRIO do que ocorre no jogo. Não é a Clarissa que está atacando aqueles desians. É o Lloyd. E o Lloyd vai, ataca, compra, anda, faz batalha. É o Lloyd que namora a Collete. Não a Clarissa. Entendem que a narração está toda centrada nas ações desse ser? Ele é o centro dos eventos, as coisas são vistas ao modo dele, quando ele as vê. Ele dá início à ação ao mesmo tempo que eu; ele também age, ele também produz história. E isso é o que constitui uma narração em primeira pessoa.

Isso vale também para personagens mudos, que hoje em dia estão sendo tão mal-falados, coitados. Ainda assim, eles são personagens protagonistas. Eles representam alguma coisa ali na história, para os outros personagens daquela história, para o mundo daquela história. Eles são alguma coisa, não o jogador. É o Chrono que faz. É o Chrono que salva. Não a Clarissa. Esse negócio de criticar o protagonista porque ele não fala é meio errado, porque apesar de ele não falar (para nós), no mundo dele, ali no jogo ele é alguma coisa. Muita coisa. E isso é um fator muito importante dento do jogo, que é a constituição da narração de um personagem em relação aos outros personagens que existem nesse mundo. É a montagem de uma história como o resultado do fator inter-conectante de realidades in-game.

–>Na minha pesquisa eu também analiso foco narrativo (ponto de vista) dessa narração. Mas como a base teórica que eu uso para essa análise é muito terminológica e extremamente truncada, prefiro não me estender muito nesse tópico. Caso alguém queira ter alguma noção de foco narrativo, peça para mim que eu explico em outro post.

Entendam que eu não tirei a importância de nenhuma manifestação. Todas elas estão ali, intrínsecas, convivendo juntas umas com as outras sem se oporem, apenas se complementando.

E vejam bem, eu falei PELO MENOS 3 manifestações de narrador. Se formos analisar Eternal Sonata, por exemplo, veremos que uma quarta manifestação de narrador está ali, contando para nós a história da composição das músicas de Chopin. Que é uma presença totalmente externa à narrativa matriz do jogo, ao mesmo tempo em que possui extrema importância porque funciona como fator introdutório dos eventos dessa narrativa matriz.

 

 

Esclareço que eu não estou criticando as análises que o Arthur fez. Nenhuma de nossas análises é melhor do que a outra. Elas duas servem para contribuir para o estudo, para a discussão da corrente de game studies que está crescendo aqui no Brasil, que é exatamente a nossa função como pesquisador, contribuir com conhecimento. Posso não fazer parte de um círculo de estudos mais específico para games como ele, mas espero com a minha pesquisa incentivar mais pessoas a estudarem games também na área da literatura.

Clarissa Picolo é mestranda do Programa de Pós-Graduação em letras da UNESP, tendo como projeto de pesquisa estudar a narrativa de JRPGs. Ela escreve como convidada neste blog.

  • http://meioorc.com/ Bean

    Antes de expor minhas ideias, esclareço que não tenho nenhuma formação no estudo de games ou de qualquer outra forma de arte, meus poucos conhecimentos nessa área foram adquiridos através do autodidatismo. Como você é bacharel, imagino que posso aprender muito com você, desde, é claro, que você não se importe em conversar com um leigo como eu. Se eu estiver chovendo no molhado com meu comentário, me desculpe.

    Sobre a ideia do script, vou acrescentar algo que sei sobre scripts de filmes (não sei nada sobre scripts de games): o diretor parte do script, mas para a hora de filmar tem que decidir coisas que muitas vezes não estão no script, como onde ficarão as câmeras, os atores, os objetos, se a atuação está boa ou não, etc. Enfim, o script é importante como referência inicial, em torno da qual o diretor do filme (ou do jogo) irá construi-lo, integrando todos os elementos que fazem um filme (ou um jogo) ter coesão. Acredito que mesmo que o resultado final não seja escrito, ter uma base escrita é importante. O que você acha sobre isso?

    Tenho uma pergunta sobre os tipos de narrador. Estou jogando o JRPG Shin Megami Tensei: Strange Journey, do Nintendo DS, e nele a visão (perceba que eu disse visão e não narração) é em primeira pessoa, e o narrador-protagonista nunca é visto pelo jogador. Nesse caso é possível afirmar que o narrador-câmera se confunde com o narrador-protagonista? Ou a correspondência/equivalência das ações do narrador-jogador com as ações do narrador-protagonista dá a este último uma dimensão à qual o narrador-câmera jamais conseguirá se equiparar?

    Gostaria também de pedir aquele post sobre foco narrativo, pois quero aprender o máximo possível sobre análise de histórias e tudo o mais. Obrigado desde já.

    • http://supersugoi.net Clarissa

      Primeiramente, obrigada pelo seu comentário!

      Com relação ao script, o que você mencionou é interamente interessante. Porque, de fato e inegavelmente, aquilo que está no papel é uma referência e não necessariamente com exatidão aquilo será colocado em prática. E definitivamente, a base escrita é importante para a construção da obra. Caso contrário veríamos por aí inúmeros filmes e jogos como colchas de retalhos, sem coesão entre as partes. O que o script faz é servir de guia para toda a complementação visual, movimentacional e sonora daquela obra. Porém, eu vejo nisso um problema que vem antes de tudo isso, que é o processo de composição da obra e processo de concretização do termo “script”.
      É claro que na composição de um jogo existe um roteiro e existe um script. Ele deve existir, faz parte da criação. O problema está em como ver e entender esse script. Porque, segundo minha opinião e a opinião de outros pesquisadores de jogos, a mídia game deve estar sempre tentando ser analisada sob uma perspectiva própria. O que significa isso? Significa que devem ser usadas sim teorias, críticas e abordagens de outras áreas (o que torna a pesquisa muito rica), como a narratologia e a teoria do cinema, mas não se deve de maneira alguma olhar para o objeto como um filme ou como uma narrativa; simplesmente porque ele não é essas coisas, jogo é jogo e pronto acabou.
      As palavras “script” e “roteiro”, querendo ou não, se consagraram no mundo do cinema, e a menção delas evoca todo aquele mundo cinematográfico. Trazer isso para uma pesquisa de jogos é um problema para o pesquisador, porque ele vai ter que tomar muito cuidado para não confundir as coisas.
      Particularmente, eu prefiro não me envolver por enquanto com esse aspecto. As manifestações de narrador que eu apresentei são independentes do processo de criação do jogo, elas são identificáveis no produto pronto e jogado, então desde o início eu tentei deixar de lado essa herança do cinema.
      Esse tipo de associação dá origem a dizeres perigosos. Vou te dar uma exemplo: ano passado, na revsita Língua de agosto, se não me engano, uma das pesquisadoras de games aqui do país, Renata Gomes, deu uma entrevista para uma reportagem sobre narrativa de games. Na reportagem ela dizia que Metal Gear Solid não era um jogo bom. Dentre outros fatores, ela argumentava que a experiência cinematográfica do jogo não era boa e que o jogo ofereceria um cinema ruim. E daí ela concluia falando que os jogos deveriam desenvolver as narrativas de maneira diferente. Ela também se posicionou contra cut-scenes, dizendo que elas não tem nada de bom a oferecer porque não são cinema e não são jogo. Bom, eu discordo dessa opinião dela, primeiramente porque não só eu, mas milhões de pessoas acreditam que MGS é um jogo bom. Segundo e mais importante: porque um jogo ou as cut-scenes de um jogo devem ser analisadas sob essa perspectiva? Não tem nada de cinema ali. Ok, influências existem, mas o jogo é um jogo, não um cinema, não um filme, não uma proposta cinematográfica. Jogo é um jogo, e as cut-scenes existem dentro do jogo com um propósito que não é cinema.
      É esse tipo de afirmação que eu pretendo evitar.

      Com relação a Shin Megami Tensei: na minha opinião, não é porque existem pelo menos três manifestações de narrador que elas devem ser distinguíveis. Elas três existem, e elas podem se manifestar no mesmo corpo-narrante, da mesma maneira, na mesma visão (como você mesmo falou). O protagonista nunca é visto pelo jogador, mas ele existe. E ele existe como personagem atuante e desenvolvedor dentro da história. Porém, o narrador-câmera também está ali, porque ele é a essência de qualquer obra de natureza visual (onde tudo é muito mais mostrado do que contado). Ele se confunde justamente na visão, ou melhor (e aqui estou introduzindo outro termo) na percepção. E o narrador-câmera é inescapável. Ele é uma identidade onisciente dentro de um jogo. Ele é uma manifestação em forma de narrador da própria natureza daquilo que é jogo.
      Mas aí uma dúvida surge: “então, se ele é tão inerente assim, porque considerá-lo?”. Bem, por razões metodológicas. É interessante que essa manifestação de narração seja mencionada e discutida simplesmente porque vendo a maneira como esse narrador age e mostra a história, muito mais pode ser entendido sobre a própria natureza daquela obra.

      E para terminar, o post sobre foco narrativo infelizmente não será somente um post. Como essa é a segunda parte da minha pesquisa, ela ainda está em mais desenvolvimento do que a parte do narrador. E confesso que foco narrativo é uma coisa excentricamente complicada em termos de jogo e obra visual. Já que você se interessa por aprender ao máximo sobre a análise desse tipo de narrativa, eu pretendo fazer uma série de posts que expliquem melhor essa questão.
      E desde já esclareço que aquilo que falo e pesquiso não é A análise de game narrative, é UMA análise. Caso você queira conhecer outras abordagens, recomendo para você a do Arthur Protasio. Ele está fazendo uma série de vídeos explicando a narrativa de jogos eletrônicos sob uma outra perspectiva (meu post inicial foi em resposta à abordagem dele). Nesse link: http://www.youtube.com/user/VagrantBard

      Assim que eu começar a postar sobre foco narrativo, te aviso.
      E novamente, obrigada pela sua contribuição!