É muito raro eu tornar pública minha opinião estritamente pessoal dessa maneira, mas creio que a ocasião pede por isso. Não somente porque eu como seguidora da série de jogos Final Fantasy fui ultrajada (assim como muitos outros), mas também porque o que testemunhei julgo ser até uma falta de respeito com o trabalho de um artista.
Sendo uma estudante de literatura, muitas vezes me deparo com livros e obras plásticas que de alguma maneira copiam trabalhos pré-existentes. De várias maneiras esses “plágios” podem ser analisados. Um muito conhecido é a sátira; outro a homenagem. De certa maneira, eles celebram um trabalho outro, geralmente prévio (pode ser contemporâneo) e o reinventam, reinterpretam, dão um novo sentido a ele. Muitas vezes esse novo sentido não é bem sucedido, como podemos ver em algumas adaptações que não deram muito certo. Apesar de serem aceitas porque cabe dentro da margem da interpretação, filmes como (vou dar um exemplo bem crasso) Resident Evil por vezes não agradam a maioria do público, porque o efeito desejado era outro. Porém, existem adaptações e releituras que surpreendem inclusive o próprio artista, como o filme Ensaio sobre a Cegueira baseado em romance homônimo. Saramago chorou ao final do filme, e creio que suas lágrimas eram de sincera alegria.
A recente releitura da música do Chocobo, originalmente composta por Nobuo Uematsu, feita no mais novo jogo da Square Enix me fez pensar em outro ponto com relação a homenagens/sátiras/adaptações: até que ponto uma re-leitura deve ser permitida para que não quero a barreira do suportável, do aceitável e do respeitável?
Pensemos: Uematsu ainda está vivo, provavelmente compondo (não sei ao certo). A primeira coisa que passou pela minha cabeça quando ouvi o tema do chocobo em FFXIII-2 foi: “O que será que ele pensaria se ele visse isso?”. Porque, na minha cabeça, aquela criação era absurda. Quando me mostraram o vídeo da tal composição, eu não acreditei, achei que era fake, feito por haters e coisa do tipo. Mas não, é real.
Talvez eu não esteja me expressando direito, então vou colocar em termos mais informais e diretos: a música do chocobo, como tantas outras, é um símbolo da série Final Fantasy. É um jingle conhecidíssimo, tanto quando Lost Woods do Zelda do 64. É um ícone, é uma remetência, é um ponto de idolatria:
O que eles fizeram foi rearranjar essa música em estilo metal, com gritarras pesadas, bateria insana e gritaria. Foi difícil para mim distinguir o jingle da música original no meio dessa barulheira, fora que eu fiquei sem entender onde que tal música entraria no jogo (porque o costume é ter músicas sem voz e mais: músicas que podem ser ouvidas por horas a fio sem cansar o ouvido):
Tem uma outra música do chocobo nesse jogo, mas está é plain as hell. Dificilmente parece uma música do chocobo:
Podem me chamar de purista, mas eu acho que tudo tem o seu limite. Textos, obras, composições possuem limites de interpretação e de ação do leitor/espectador/ouvinte nela. Não se pode forçar uma determinada criação a ter todo e qualquer sentido que creia ser possível para ela, isso é simplesmente ilógico. E, por uma pura e simples questão de opinião, eu digo que essa versão da música do chocobo forçou a barreira de interpretações aceitáveis que essa música pode ter.
Pelo que já ouvi da comunidade interpretativa de Final Fantasy, músicas com voz são vistas com extrema cautela. Isso porque as músicas da série (que, por primazia, não precisam de voz) já são boas, ótimas e contagiantes do jeito que são. Existe todo um protocolo nas músicas do Nobuo Uematsu: ele é um compositor que tem um determinado estilo, que compõe as músicas de uma determinada maneira. Eu arrisco dizer que a série Final Fantasy é somente o que é hoje e tem a importância que tem para a história do JRPG justamente em razão das composições do Uematsu.
Muitos ainda dizem que a Final Fantasy acabou no Final Fantasy X, o último que a Uematsu teve participação. Ou seja, a imagem dessa série de jogos está intimamente ligada com a figura desse compositor e com as músicas que eles fez. Fazer essa adaptação da maneira que foi feita nem chega a ser sátira ou piada, é um ultraje, porque usa o pretexto da composição do Uematsu para fazer algo extremamente passível de crítica.
Não que eu esteja aqui falando mal do estilo da música ou coisa parecisa (quem sou eu). Eu estou falando justamente daquilo que a música do chocobo representa em relação ao que foi feito dela.
Bem, talvez minha reação esteja sendo um pouco exagerada. Já faz tempo que o chocobo não tem mais tanta impotância em Final Fantasy como tinha anteriormente. O que mostra, talvez, o estado de degeneração da série. Ou então talvez o estado de mudança (ou da tentativa de) em que a série se encontra. Dá para perceber que os novos desenvolvedores querem atrair mais pessoas, querem tentar coisas novas. Mas aí entra um conceito muito importante quando você tem algo chamado gênero ou algo chamado “série” em que o sentido que se pretende é” coleção de trabalhos de uma mesma categoria cujos títulos apresentam características similares e interseccionantes entre si”: se você tentar mudar muitas coisas, aquilo não é mais aquilo que se está acostumado, mas sim uma outra coisa.
Então, Final Fantasy ainda é Final Fantasy?
UPDATE: Este vídeo comprova que o arranjo é real: