Portal 2 Review – Construindo protagonista e antagonista

Atenção: a review a seguir tem spoilers magníficos dos jogos Portal e Portal 2. Caso você não tenha jogado esses jogos, recomendo que você não leia o que vem a seguir, porque isso vai estragar e influenciar sua experiência.

É possível que você já tenha lido uma porção de reviews sobre Portal 2 (2011), e garanto que a maioria delas fala bem do jogo: explica como a jogabilidade dele é lisa e sem problemas, como os puzzles são desafiadores, como o cenário é coerente, ou como a GLaDOS continua “boa” como sempre. Eu também vou falar bem do jogo, mas em outro sentido (mesmo porque não quero repetir aquilo que já foi dito). Pretendo falar em como as figuras da protagonista e da antagonista se constituem dentro do jogo.

Portal (2007) é atraente por vários motivos. É um jogo em que você está no papel de uma cobaia tentando escapar daquela espécie de laboratório enquanto uma IA sádica e sarcástica submete você a uma série de testes (puzzles) que, caso não corretamente resolvidos, podem te matar. A IA não só tenta matar a protagonista (in)diretamente por meio desses puzzles como também a provoca psicologicamente de uma maneira sutil mas perceptível. Apesar de à primeira vista não parecer, conforme vamos progredindo pelo jogo percebemos que esse laboratório está na verdade em ruínas, que você é a única pessoa ali e que a situação é mais séria do que parece.

No final, para derrotar a GLaDOS, temos que ir jogando no incinerador um core dela de cada vez. Cada vez que jogamos um core, ela revela uma característica dela que aquele core estava contendo. E o primeiro é o mais revelador. Depois que jogamos aquele core roxo no incinerador, GLaDOS se torna ainda mais agressiva, dizendo que aquele era o que prevenia ela de matar todo e qualquer ser humano que encontrasse com um gás letal (e claro que isso intensifica a experiência de matar esse chefão porque agora temos um tempo para terminar essa tarefa). Ela começa a falar diferente, revela pequenos detalhes de quando tentou matar outros, e ataca verbalmente a protagonista.

Ou seja, nesse ato de “matar o chefão”, pela maneira que foi colocado no jogo, estamos forçando um desenvolvimento do antagonsita por meio das nossas ações como jogador e através da protagonista. Nós como jogadores fazemos com que GLaDOS se revele, mas ela se referencia como a causa disso sendo a protagonista. Ou seja, a constituição do antagonista desse jogo se dá não somente pelo narrador câmera que nos mostra GLaDOS falando nua e cruamente como o programador do jogo desejou que assin fosse; se pensarmos no procedimento de narração, percebemos que GLaDOS somente se mostra a partir do momento em que a protagonista (e automaticamente o jogador) ativa tal movimento. A antagonista se mostra mais antagonista somente a partir do momento em que partes dela são destruídas pela protagonista. Sem essa ação da protagonista, nunca veríamos tal lado da GLaDOS. E percebam que essa é uma característica intrínseca da protagonista: quando o primeiro core cai no chão, o jogo não te dá muitas opções; ou você joga no incinerador ou não continua a matar o chefão.

Na sequência do jogo essa constituição de personagem pela outra personagem é intensificada. Em Portal 2, muitas das questões deixadas na dúvida no primeiro jogo são esclarecidas. A história da Aperture Science, sua ascensão e decadência, Cave Johnson, Caroline, o recrutamento de cobaias, as antigas câmaras de teste, outros experimentos (aka geléia lunar), enfim. Descobrimos o suficiente para ficarmos satisfeitos e até comovidos com a história. Como a GLaDOS volta à vida retendo a memória de que foi morta por nós/pela protagonista, ela aparece explicitamente sarcástica, irônica, cruel, vingativa, enfim. Ela é a encarnação do ódio em máquina, insultando a protagonista de diversas maneiras. E é aí então que ficamos sabendo que a protagonista é órfã, que ela entrou no laboratório em uma festa de dia dos pais, que ela é meio gordinha. Mas quem fala tudo isso para nós é a GLaDOS, e não a protagonista. A protagonista não fala nada, nunca.

Na sequência, juntamente com a história da Aperture Science, ficamos a par da história da própria GLaDOS. Primeiro que com a Oracle Turret nossa suspeita é ativada. Ao salvar essa turret defeituosa da esteira de destruição, ouvimos frases chaves como “her name is Caroline” ou “don’t make lemonade”, o que é intrigante para nós que ainda não conhecemos toda a história naquele ponto do jogo. Lembrando que nós somos também a protagonista, esta automaticamente ouve tais frases enigmáticas e também seria (em nossa suposição) intrigada por elas; ela começa a ter uma participação de efeito na sequência de revelações que virá a seguir.

Quando o lugar da GLaDOS é tomado por Wheatley, a protagonista se vê obrigada a unir forças com sua máquina arquiinimiga a fim de efetivamente conseguir escapar da Aperture. Qual é a primeira coisa que ela faz? Ela finca GLaDOS na portal gun, para carregá-la durante todo o percurso de volta para os andares superiores do laboratório. Não somos nós jogadores que tomamos essa decisão, mas a protagonista. Também, o silêncio da protagonista leva GLaDOS a falar muitas vezes. E durante todas aquelas câmaras de teste em que nos é a apresentada a história daquele laboratório ficamos sabendo quem é Caroline, porque ela ainda está ali, como ela se tornou o que se tornou e o que efetivamente aconteceu no dia dos pais.

Mas o mais importante, como no primeiro jogo, acontece no final. O chefe dessa vez é o Wheatley, que está munido de vários brinquedinhos e trapaças para derrotar a protagonista. Quando como jogadores já fizemos tudo o que tínhamos para fazer, a protagonista independente de nossa ação abre um portal na lua e outro no chão para sugar tudo o que tem ali, na intenção de acabar de vez com o Whitley. Ela vai junto, mas GLaDOS impede que ela se perca no vazio espacial. Essa ação da protagonista tem um efeito tão importante quanto as ações do primeiro Portal tem, só que surte o efeito contrário. Enquanto em Portal a incineração dos cores faz com que a GLaDOS se torne mais e mais agressiva e assassina, em Portal 2 a abertura de um portal na lua e a eventual derrota de Whitley transforma GLaDOS de outro jeito. Não que ela fique boazinha, mas ela salva a protagonista, quando poderia muito bem ter simplesmente deixado ela desaparecer no infinito. E claro que essa é uma escolha tomada pela antagonsta que tem suas causas em, por exemplo, a protagonista ter fincado a batata na portal gun. GLAdOS revela que ela passou a entender melhor a Caroline que tinha dentro dela, e que justamente por esse motivo ela decidiu apagar tal existência – o que na verdade pode muito bem ser mentira, como a música no fim evidencia.

Percebemos então que em ambos os jogos, a ação da protagonista é o gatilho que desencadeia as revelações sobre a antagonista feitas pela própria antagonista. É essa protagonista também que faz com que GLaDOS seja sarcástica da maneira que é (não podemos afirmar que ela seria da mesma maneira caso a protagonista fosse um homem, por exemplo). Seria um exagero dizer que a personagem da GLaDOS é somente do jeito que é em razão da protagonista, mas é evidente que muito do que ela é é influência pela existência específica dessa protagonista dentro da trama da narrativa – e claro, tudo isso passando pela mão do jogador.

Mas e a protagonista? Como que fica nessa? Uma coisa que sempre me intrigou com relação a Portal é justamente a pergunta: como sabemos que a protagonista chama Chell se a GLAdOS sequer uma vez fala o nome dela? Bom, isso é bastante intrigante. A começar que os detalhes que sabemos da vida da Chell nos são revelados pela GLAdOS. Na verdade, tudo o que sabemos sobre a Chell é revelada pela antagonsita. Se quisermos exagerar, até mesmo a imagem física da Chell nos é mostrada através da GLAdOS: se pensarmos que a laboratório inteiro é ela, e que no primeiro jogo nos vemos pelo espelho, fazendo uma lógica meio fajuta podemos relacionar que a imagem física da Chell nos é trasnmitida pela GLAdOS. Mas mesmo sem esse exagero é possível verificar que a construção da Chell como uma protagonsita que de fato interage com a GLAdOS é feita justamente pelo fato de que a GLAdOS contribui com esta tarefa.

Ou seja, antagonsimo e protagonismo na série Portal são instâncias narrativas construídas sob influência recíproca. Uma personagem se revela por meio da outra. E por isso ser bem manipulado no jogo e fazer parte do foco na narrativa, o jogo é intrigante não só pelo desafio lúdico, mas também pelo conflito entre personagens que vemos ali.

PS.: Na verdade, se formos olhar com cuidado, a maioria das narrativas cuidadosamente constituídas é assim; a construção das personagens se dá na influência dinâmica que as personas trocam entre si. O Coringa age da maneira que age muito porque o Batman é do jeito que é. A existência do ser Batman causa o Coringa a se comportar de certa maneira. Como será que o Coringa seria se ele fosse o vilão da série do Homem-Aranha? Isso também com personagens primários e secundários. Robin só é uma bichinha quando está perto do Batman, sendo o ajudante deste. Quando tiramos o Robin deste contexto, ele vira um badass (vide Teen Titans). É por esse motivo que eu sou contra cross-over e mantenho a forte opinião de que cross-overs não dão certo. Mas esse assunto fica para outro post.

Clarissa Picolo é mestranda do Programa de Pós-Graduação em letras da UNESP, tendo como projeto de pesquisa estudar a narrativa de JRPGs. Ela escreve como convidada neste blog.

  • Sussumulg2

    Gostei muito da sua análise, portal 2 é um dos melhores jogos que eu já joguei na minha vida e ela foi merecedora ao mesmo. Esse jogo é simplesmente explendido, acho difícil alguém não gostar dele.

  • http://www.kuroneko1.blogspot.com/ Jun

    Olá =) Primeiramente, obrigada pelo coment no post sobre a Catita (e desculpe a demora pra responder haha). É bom contar com o apoio de outros gatólatras e loucos por animais no geral que também já passaram por isso ^^
    E sobre esse jogo não tenho nada a comentar porque nunca joguei, mas achei a nendo de um dos posts anteriores muito fofa *O* Tô doida pra comprar uma nendo da Rin de Fate/stay night muito fofa que vi no Ebay. E é realmente uma alternativa aos figures normais, que são mais caros e tal. Bom ter visto que são fofas, de boa qualidade e versáteis mesmo, quero comprar mais ainda agora hehe.
    E vou ficar vasculhando reviews de animes aqui, parecem ser ótimas!
    Kisus