Como Penso Jogos

Como penso jogos e para quê isso pode servir

Em primeiro lugar, não ignoro nem condeno nenhuma ideia. Faço ressalvas, mas isso é meramente uma forma de expressar questionamento. Eu gosto de pensar jogo como jogo. Jogo como sendo algo que ele pode ser, como resultado de vários processos culturais, como um produto que dialoga vários protocolos (emprestando o termo de Lisa Gitelman) dentro de um único objeto, uma entidade que consegue harmonizar dentro de si elementos de naturezas diferentes em diferentes quantidades. Não existe um jogo que seja igual ao outro; aquilo que define um jogo está sempre variando nos mais diferentes valores, fazendo com que a mídia seja de uma riqueza impressionante.

Por vivência, sei identificar muito bem o que é um jogo de videogame. Sempre li, ouvi, assisti e joguei muito, mas mais joguei do que tudo, então possuo uma certa inerência pessoal com relação a mídia. Quando penso jogo como jogo, estou olhando para aquilo por tudo o que ele é e por tudo o que ele implica por ele ser ele mesmo, por ele ser a própria mídia que propõe. E o que a mídia do videogame propõe? Um diálogo intenso, uma negociação intensa entre níveis, intensidades, gêneros e sub-gêneros de diversas naturezas de suporte, e uma harmonia entre elas (já que o objeto existe). Não penso em jogos como literatura, nem como cinema, nem como nada parecido, e rejeito a ideia por uma série de motivos. Um é que li coleções durante toda minha vida e joguei coleções durante esse tempo e sei que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, inatamente. Mas não estou aqui pregando que abordagens devam se separar; de maneira alguma, creio que se há sentido e motivo, abordagens e mais abordagens devam ser usadas para ampliar a visão e a discussão. Não vejo problema algum em usar uma abordagem literature-generated para analisar um jogo, como eu mesma já fiz. Também não vejo problema em pensar o jogo como jogo, mesmo com um olhar tendendo para o cinematográfico, como eu já vi fazendo. A questão está sempre em COMO usar a abordagem e em COMO gerar o seu objeto de estudo (o seu videogame) a partir dessa abordagem. Creio que independente de qual abordagem for usada, o jogo não deve ser pensando como um conteúdo gerado de algum outro lugar de discurso. Ele deve ser pensando como self-contained, como ele mesmo sendo o lugar de discurso, no máximo outros jogos fazendo esse papel de lugar. Isso também não significa que um jogo deva ser estudado sozinho – de maneira alguma. Jogos podem (e devem até) ser estudados comparativamente; as influências de um jogo podem ser estudadas, jogos-adaptação ou adaptação de jogos para outro suporte podem ser estudadas paralelamente ao texto-matriz. Mas ainda assim, esse jogo-adaptação de um livro (por exemplo, as adaptações de dois livros da Agatha Christie para o Wii) ainda devem ser vistos como jogo e não como literatura interativa.

Por mais que um livro explore possibilidades, ele dificilmente permitirá o leitor a feitoria e o manuseamento de um inventório como o jogo permite

Não só porque por questões metodológicas o termo soe e traga discursividade diversa para a pesquisa, mas também pelo que ele significa/pode significar. O que é literatura interativa? Série enrola-e-desenrola? A mesma coisa que cinema interativo? Pra quê, então, tantas denominações diferentes para o mesmo objeto? Justamente porque são coisas diferentes, e facilmente distinguíveis neste ponto. É claro que eu adoraria ver que um destaque maior está sendo dado aos jogos eletrônicos dentro da academia. Mas aí entra para mim outra questão que é: como eu quero ver esse destaque sendo dado? Eu creio que nós estudiosos teríamos muito de proveitoso se existissem pesquisas com abordagens mais comumente direcionadas à literatura sendo dialogadas com jogos. Por exemplo, FF VII sendo analisado sob uma perspectiva marxista que preza pelos meios e fins dos eventos do jogo sendo basicamente consequências da luta de classes. Ou então, Eternal Sonata (um de meus objetos de estudo) sob uma perspectiva psicanalítica freudiana. Ou então, uma abordagem genética de Bayonetta, já que hoje temos facilmente à mão os vários e vários rascunhos que levaram à composição final da personagem. Ou até uma abordagem de gênero. No entanto, esses exemplos não fazem com que o jogo seja uma literatura. Eles ainda são jogos eletrônicos, sendo olhados por outros ângulos, por outras perspectivas, dialogando com elas. Do mesmo jeito que o um livro pode ser olhado sob uma perspectiva antropológica e ainda assim não ser um tratado da ciência e natureza do homem. Um jogo também pode ser analisado sob essa perspectiva, como algum indie game que trata da natureza humana (Convergence, Everyday the same dream). Inclusive, se existe espaço e se o sentido é verificado, uma abordagem que põe em destaque a poética do jogo pode ser usada. Como pensar Today I die sem pensar em Otavio Paz (depois de claro, jogar e ler os dois respectivamente)? Mas em nenhum desses casos o jogo é visto como literatura. Se o jogo continua sendo visto como jogo nesses casos, pode ser que as abordagens seja refinadas para melhor situar o objeto jogo eletrônico. O destaque que eu quero que os jogos eletrônicos tenham é um destaque que eles ganham por serem eles mesmos. E não um destaque que foi gerado por essa ou outra similaridade com a literatura, ou por essa ou outra convergência elemental com o cinema. Mesmo porque, a mídia do jogo eletrônico apresenta uma variedade tão imensa de aspectos que generalizar a mídia toda como tendo esse ou aquele elemento é complicado. Não só em intensidade, mas em quantidade e gênero. Ok, jogos eletrônicos têm narrativa, mas que tipo de narrativa e segundo qual definição? De qual gênero de narrativa estamos falando? Em qual grau essa narrativa existe e se faz aparente no jogo? Mas acho que a mais importante de todas essas questões que podem surgir em relação à narrativa dos jogos eletrônicos é: “até que ponto essa narrativa existe?”; ou melhor: “a partir de que ponto a narrativa começa a existir, por quê e o quê isso traz de bom para o jogo?”. Esse questionamento é justificável pelo simples motivo de ser realista. Estamos em uma época onde tudo é narrativa, mas creio que existam limites, não somente para jogos, mas para todas as outras mídias, e creio que não há mal nenhum em pensar razoavelmente para depois tentar expandir esse pensamento e tentar encontrar essa narrativa ali de alguma maneira. Mesmo porque rejeitar absolutamente conceitos (como rejeitar totalmente que é impossível que algo não tenha narrativa) é considerado hoje anti-pós-moderno. Da mesma maneira que relativizar tudo (tudo tem narrativa) não é o caminho. Naturalmente, nenhuma narrativa foi pensada para Pong. A partir de quando podemos afirmar que há uma narrativa ali? A partir do momento que considerarmos o user-generated content. Mas ela continua reduzida. Uma tentativa de narrativa existe em Tetris. Os foguetes decolam. Mas a partir de qual momento esse fato importa para a experiência do jogo e de que maneira isso molda a gameplay?

Fonte: The Unofficial Gameboy Tetris Home Page

Existem jogos que vêm com a história explicada no folderzinho (isso era mais comum na época das fitas). Mas em que grau e como essa narrativa descrita ali se permeia com os eventos visuais-lúdicos do jogo?  Sonic tem narrativa apesar de não ter falas (o que seriam então dos filmes-mudos?). A sucessão de eventos e de intrigas das curtas cenas é clara. Aquela narrativa que se vê ali no jogo é a mesma explicada no folder? É constituída da mesma maneira? Como se pode observar, eu lanço diferentes olhares para o jogo eletrônico e possuo questionamentos variados com relação àquilo que pode ser estudado, observado e afirmado sobre ele. Não nego conceitos e ideias, apenas ponho em questão aquilo que está ou pode estar sendo proposto, porque creio que essa é a chave para enriquecer a discussão e desenvolver melhor a proposição. Eu não gosto muito do que Aarseth fala, porque em alguns textos ele é meio extremista, mas acho muito sensata a proposta dele como ludólogo. Na utopia dele de querer separar o jogo de tudo, ele acaba gerando uma certa atitude exageradamente protetora que não é benéfica, mas ele está tentando trazer a atenção para o jogo por aquilo que ele é, pela maneira com a qual ele vê jogo. Eu tenho outra definição de jogo, que já mencionei, e gostaria que dessa maneira o destaque fosse dado. Além do mais, seria muito irônico se eu negasse veementemente qualquer outro tipo de abordagem para o jogo que não seja ludológica. Eu estudo dentro do departamento de Estudos Literários na minha faculdade – significa que eu já estou trabalhando entre fronteiras. As divisões e as fronteiras podem ser (e eu acredito que sejam, ainda mais com a convergência cultural) líquidas, mas isso não significa que uma coisa se torne outra por esse fato. Existe uma fronteira muito embaçada entre cinema e jogo, ainda assim cinema não é jogo, nem o contrário. O mesmo com a literatura. Eu fico pensando na situação em que os jogos sejam vistos como outra coisa que não jogo e em como isso repercutiria. Minha reflexão se pauta bastante no propósito de jogo ser incluído na área da literatura. Vislumbro um departamento de literatura comparada em que os jogos eletrônicos sejam estudados nesse nicho por professores e alunos – jogos incluídos no comparative literature studies, jogos como literatura. Então eu reflito mais um pouco dentro das minhas próprias perspectivas e penso que apesar de isso ser ótimo, isso não seria tão ideal quanto jogos sendo estudados dentro de um “comparative game studies“.

Clarissa Picolo é mestranda do Programa de Pós-Graduação em letras da UNESP, tendo como projeto de pesquisa estudar a narrativa de JRPGs. Ela escreve como convidada neste blog.