Como eu sou da área de Estudos Culturais e como sou conhecida como um pessoa que joga muito videogame e ouve 8bits, pediram-me que “falasse um pouco” sobre cultura nerd ou cultura geek, da minha perspectiva de pesquisadora de games.
Minha primeira questão sobre isso é o que exatamente falar sobre essas culturas. Claramente a identificamos dentre outras culturas jovens que existem, sabemos diferenciá-las. Existem alguns elementos que podemos apontar como constantes nesse meio, ou que melhor, que geralmente são apontados como as características constantes nesse tipo de grupo.
Os elementos que fazem parte dessas característica variam bastante, e por vezes, admitem certos padrões. Depende, basicamente, de quem está falando sobre esse tipo de cultura. Então vemos que nerd e geek são pessoas retraídas, geralmente inteligentes, que não se comportam como a maioria, que usam óculos e têm espinhas, que sofrem bullying, que jogam muito videogame, que gostam de Star Trek ou Star Wars, que entendem muito de tecnologia, que geralmente estudam alguma coisa na área de exatas, que cultuam Douglas Adams, que leem tantos quadrinhos que confundem a realidade com a ficção. E infelizmente como qualquer outra cultura jovem que é identificada por aí, os participantes da cultura geek/nerd tendem a ser colocados todos dentro de um mesmo saco, como se fossem as mesmas coisas. Do mesmo modo, pessoas que geralmente possuem uma ou duas características daquelas que eu falei acima, tendem a se achar geeks/nerds ou a serem rotuladas como um.
Rotulação é algo que sempre vai existir, e essa é uma conversa muito longa já.
O fato é que a cultura geek/nerd hoje é muitíssimo conhecida por quase todos, ou por pelo menos quase todos aqueles que navegam com frequência na internet. Uma pessoa comum hoje pode muito bem entender o que quer dizer “vir para o lado negro da força”, uma coisa que antes talvez não fosse tão clara. Qualquer um também sabe o que quer dizer “Bazinga!”.
E por falar em “Bazinga!”, o seriado The Big Bang Theory, na minha opinião foi um dos maiores responsáveis pela popularização e disseminação da cultura geek/nerd. Primeiramente porque é inegável que a televisão ainda tem muito mais appeal que a internet. Segundo, TBBT é uma série de comédia do tipo cenários quase fixos, que tem muito público. Terceiro, essa série tem no papel de um dos protagonistas a Penny, uma pessoa “normal”. E a relação entre os nerds/geeks com essa pessoa “normal” é um dos centros da comédia da série.
É muito fácil perceber que se as piadas colocadas ali fossem somente relacionadas à cultura geek, uma hora as coisas iriam parar de ter graça. Só iriam ter graça para quem sabe do que está sendo falado. Contrariamente, a comédia da série é centrada no choque que esse comportamento retraído geralmente de nerds e geeks tem quando em contato com o “normal”.
É só lembrar de uma vez que o Sheldon foi fazer um discurso, bebeu e ficou louco, e decidiu contar piadas. Lembro-me que uma era assim:
- Porque a galinha atravessou a Faixa de Möbius?
– Pra chegar no mesmo lugar.
É uma piada realmente engraçada, para quem sabe o que é essa faixa. Chega a ser uma piada meio tonta até. Mas vejam, seria interessante saber qual a porcentagem de pessoas que veem a série que entenderam essa piada de cara.
O importante é que TBBT contribuiu para que mais pessoas conhecessem sobre essa cultura e que as próprias pessoas que se achassem participantes dessas culturas começassem a aparecer mais e a se mostrarem mais. Afinal, é muito bom ter uma imagem que pode ser associada com algo divertido que se vê na tv.
Outra coisa que contribuiu para a popularização dessa cultura geek/nerd foi o comércio. Sites e sites de camiseta como OneHorseShy, BustedTees, e algumas coisas brasileiras que não me lembro o nome aproveitaram e começaram a vender produtos que não somente geeks comprariam, mas qualquer um que entendesse a piada. “Blow Me” e “A Link to the Future” para mim, até agora, são uma das melhores. E não são camisetas tão caras assim. Sem contar que andar por aí com uma camiseta estampada de um cogumelo verde com os escritos “1 up!” embaixo vai atrair a atenção de quem você quer atrair atenção: aqueles que “gostam” da mesma coisa que você e pensem: “olha, ele joga Mario/ele é um gamer/ele é geek” e variantes.
A terceira coisa que contribuiu para a expansão dessa cultura e para sua (quase) banalização foi a internet e a cultura participativa, e aí os limites se estouraram. Quem é geek? Eu que já passei 10 horas seguidas jogando Tales of the Abyss ou aquela menina lá que jogou Mario umas vezes na casa do primo quando era criança e tem um blog sobre o bullying que ela sofria na infância porque gostava de estudar? Aquele rapaz lá que usa óculos e desenvolveu um braço robótico com quatro níveis de liberdade quando tinha 12 anos ou aquele outro que tem sei iPad jailbroken e se acha um hacker? Um colega meu que está fazendo mestrado em matemática e não perde um episódio de Star Treck ou aquela garota que joga videogame passando esmalte nas unhas?
Como qualquer outra coisa na época pós-moderna, tudo acaba se misturando e entrando numa massa única de confusão onde pouca coisa acaba fazendo sentido.
O que é cultura geek/nerd hoje? Claramente, nerd e geek são duas palavras que perderam a conotação negativa que tinham antes. Hoje é até bom você ser geek, porque quem é geek é inteligente. Já vi por aí blogs falando que namorar um geek/nerd é bom, porque, por exemplo, ele não vai te trocar pelos amigos porque ele não tem tantos assim. Ou então porque, como um geek/nerd geralmente é inteligente, ele vai saber te entender melhor.
Como se as coisas tivessem mesmo um padrão assim.
Existem por aí até blogs de moda geek/nerd, que postam notícias sobre desfiles em sei lá onde, e dão dicas de maquiagem e afins. Ou seja, a imagem do geek/nerd hoje está adquirindo uma face até contrária daquela que ele primeiramente tinha (basicamente, nerds não se importam com a aparência).
A popularização dessa cultura é tamanha que daqui a pouco eu tenho certeza de encontrar ads em flash por aí dizendo: “O quão geek é você? Clique e faça o teste”.
Essas coisinhas aí acabaram gerando uma onda de “protestos” (talvez “onda de fúria” seja melhor) de certos fórums como o 4chan. O pessoal geralmente argumenta, por exemplo, que tem certas pessoas que se autorotulam de geek/nerd mas nunca pegaram um gameboy na mão. Também tem gente por aí que já me acusou de não ser “nerd o suficiente” porque eu não gosto de Star Trek (como se eu estivesse pedindo por reconhecimento).
Não que essas coisas sejam um problema, mas tem algumas coisas que eu realmente não consigo entender. Eu não vejo uma relação entre um desfile de uma marca de roupa em Milão com a cultura geek, ou então de uma maquiagem com um jogo de videogame. Eu também não consigo entender como uma pessoa pode dizer que tem um blog sobre cultura nerd se nesse blog dela essa pessoa só posta notícias google-translated do Kotaku. E pior, já teve muitos dias que aqui na blogosfera brasileira eu vi, em blogs nerds/geeks, a mesma notícia repetida em todos eles. Não aguento mais ver coisa sobre LA Noire por causa disso.
Não repreendo nada (pelo menos não abertamente, porque as pessoas devem ser um pouco políticas), mas acho que as coisas podem melhorar. Eu realmente acho que em vez de todos os discursos se repetirem, eles poderiam variar, expandir, pensar melhor. Em vez de somente postar notícia do jogo, falar mais sobre ele, dizer o que pensa, o que espera dele. Tentar jogar. Tentar testar outros consoles, mesmo que antigos. Ler Isaac Asimov, em vez de somente cultuar Douglas Adams. Pensar um pouco em graphic novels de outros autores, como Milo Manara, em vez de somente ficar em cima dos mesmo super-heróis. Mostrar um pouco de Doctor Who em vez de repetir Star Wars.
Não que a popularização seja ruim, ela é boa. Faz com que as pessoas dialoguem mais, se exponham mais, criem mais. Mas nada disso deve ser jogado e deixado ali como está. Acredito que para fazer valer, não basta você somente usar um óculos grande, jogar Wii a tarde inteira e então bater no peito com orgulho pensando “Nossa, Santa Mãe da Monalisa, como eu sou nerd!”. Acho que se o meio cultural te dá coisas com as quais se identificar e pessoas com as quais conversar, você deve retribuir de alguma maneira. E isso não é somente ficar se exibindo como um membro do grupo sem nada produzir. Ou seja, é necessário participar.